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A PEDRA DE RAIO DE RUBEM VALENTIM,

OBÁ-PINTOR DE CASA DE MÃE SENHORA

 

POR PAULO HERKENHOFF

 

Ele era obá da Casa de Mãe Senhora. O iyalorixá do Axé Opô Afonjá (1), terreiro da nação ketu, era pintor amador de quadros, depois de iniciado na adolescência por Arthur Come-Só, pintor-decorador de paredes. Deixou a profissão de dentista para se dedicar à pintura, a conselho de sua Mãe Senhora (2). A trajetória do Obá Rubem Valentim, obsessivamente dedicada aos orixás, é uma das aventuras mais fiéis a um tema na arte brasileira. No entanto, como quem procura sua voz, a obra de Valentim trazia, mais profundamente, uma incessante busca da linguagem. O machado duplo de Xangô, que corta de dois lados, foi um padrão principal e também a metáfora de uma arte que duplamente pensa na tradição ocidental e incorpora genuinamente as raízes africanas da cultura brasileira. É o próprio artista que declara em seu Manifesto ainda que tardio: "Intuindo o meu caminho entre o popular e o erudito, a fonte e o refinamento - e depois de haver feito algumas composições, já bastante disciplinadas, com ex-votos, passei a ver nos instrumentos simbólicos, nas ferramentas do candomblé, nos abebês, nos paxorôs, nos oxés, um tipo de 'fala', uma poética visual brasileira, capaz de configurar e sintetizar adequadamente todo o núcleo de meu interesse como artista. O que eu queria e continuo querendo é estabelecer um 'design' (que chamo Riscadura Brasileira), uma estrutura apta a revelar nossa realidade" (3).

Os negros trazidos para a América como escravos viveram a dimensão de um corte cultural abrupto e brutal. Era uma interrupção do tempo com a desintegração promovida pela diáspora. O filósofo argentino Saul Karsz, ao estudar o tempo e seu segredo na América Latina, observou que, para os contigentes formados pela escravidão, alegorias de melancolia do passado pavimentaram o caminho para a represália de um tempo roubado cuja saga e fracasso foram recontados pelo realismo mágico de Alejo Carpentier em El Siglo de las Luces (1962) (4). No Brasil, Graça Aranha, em sua A Estética da Vida (1921) (5), havia concluído que a cultura brasileira deveria transformar sensações em obras de arte e se constituir a partir de uma nova relação com a natureza do país. Comparando as três etnias básicas da formação da brasilidade, Graça Aranha argumentou que os portugueses traziam melancolia, os índios e os negros mantinham uma relação com a natureza marcada por uma 'metafísica bárbara'. Os povos africanos teriam trazido um 'terror cósmico' (medo da natureza que se expressa através de representações ilusórias), enquanto que os índios transmitiam uma 'metafísica do terror' (que enche de fantasmas o espaço entre a natureza e o espírito humano). Para Graça Aranha, o projeto moderno seria a superação desse dualismo por meio da integração do eu no cosmo. 

Na perspectiva histórica da América Latina, Karsz fala ainda de presentificação do passado. No entanto, Rubem Valentim e sobretudo a geração anterior já não poderiam viver a nostalgia da África, mas experimentaram uma atualidade do presente, como tempo de reivindicação do direito de cidadania ao culto (6) e de integração na cultura brasileira. Era uma luta no interior de uma sociedade que sofria de um "complexo de inferioridade do passado africano", em que negro e africano tornaram-se sinônimos de escravo, conforme observa o antropólogo Arthur Ramos (7).

A análise da trajetória de Rubem Valentim enseja pequeno retrospecto de momentos de problematização da herança africana na formulação histórica da arte do Brasil. O primeiro estudioso da arte religiosa afro-brasileira foi Nina Rodrigues em 1904, com o seu artigo "As Belas-Artes dos Colonos Pretos do Brasil" (8), argumentando que o sistema escravista desvalorizava o valor artístico dessa produção. No entanto, seu pioneirismo deve ser contraposto ao seu racismo, quando escreve que "a raça negra no Brasil, por maiores que tenham sido os seus incontestáveis serviços à nossa civilização (...) há de constituir sempre um dos fatores de nossa inferioridade como povo" (9). Décadas depois, Arthur Ramos também notará que certas peças antropomórficas dos cultos do candomblé da Bahia tinham absorvido traços europeus. Depois de questionar o termo 'primitivo' quando referido à arte africana, observa que nos Estados Unidos haviam se perdido as tradições da arte plástica africana, porque lá "o negro artista prefere imitar os modelos europeus, e se há algum movimento modernista primitivo entre eles, terá vindo de fontes eruditas, e não como uma preservação de traços africanos" (10).

A obra de Rubem Valentim poderia ser aproximada de uma certa 'teoria das representações da alma'. No entanto, ela se distancia do conceito de mera representação animista ou de vivificação das forças inanimadas da natureza, discutidos por Freud. A obra de Valentim, no seu viés mitológico e religioso, tem como ponto de partida aquilo que Freud entende como o 'fundo vivo de nosso idioma, de nossas crenças e de nossa filosofia' (11). O orixá, escreve Pierre Verger, "é uma força pura, àse (poder do ancestral-orixá), imaterial que só se torna perceptível aos seres humanos incorporando-se a um deles" (12). A teogonia de Valentim se realiza em forma de uma escritura e não na representação antropomórfica dos orixás, mas na compreensão da estrutura simbólica. Nisso os orixás de Valentim, no processo de construção de sua presença visível, se diferenciam dos orixás dos artistas cubanos Wifredo Lam e Cárdenas, que, mais envolvidos numa atmosfera de magia, permitem à Europa eurocêntrica tratar seu conteúdo religioso como 'surrealismo'.

Rubem Valentim foi, de várias formas, um contraponto na cultura brasileira. Valentim traz uma bagagem cultural dos candomblés da Bahia, na sua vertente iorubá, e será marcado pelo clima cultural do Rio de Janeiro, onde chega em 1957. No Rio conhece a imagística dos pontos riscados da umbanda, inexistentes no candomblé da Bahia" (13). A produção concretista carioca, desdobrada com a ruptura do neoconcretismo, encontra um paralelo na obra de Valentim, como uma adesão às matrizes culturais do momento. Seu recurso à geometria para dinamizar o plano ao ritmo gráfico, aos pontos de concentração de energia visual traz alguns aspectos que permitiriam a aproximação de sua obra dos contemporâneos Metaesquemas de Hélio Oiticica. Valentim abandona definitivamente seu interesse figurativo e se dedica a uma escritura de símbolos dos orixá do candomblé da Bahia, reduzidos a elementos estruturais-geométricos fundamentais. Esse desejo de linguagem construtiva, experimentado na obra de Valentim, vai distanciar o artista das apropriações típicas mais pitorescas da literatura de Jorge Amado ou do erotismo edênico do padrão mulher negra, tão adotado entre os pintores modernistas do Brasil. A Bahia padeceu de exotismo (ou o "pecado tão fácil de se cometer na Bahia!", conforme analisou Mário Pedrosa) (14) até que João Gilberto, Glauber Rocha e Caetano Veloso viessem resgatá-la de sua doença crônica, o folclorismo. Ao se fixar definitivamente na Bahia em 1950, depois de sua viagem pelo Brasil entre 1946 e 1948, Pierre Verger desenvolve o seu grande trabalho fotográfico, em que o percurso do campo da diáspora africana será também uma cartografia dos territórios dos orixá, comparando o culto iorubá na África e em diversas regiões da América. É Rubem Valentim quem define para a arte brasileira a existência de questões da negritude, até então, em termos gerais, concentradas em cenas de costumes. Valentim é o que problematiza a herança do candomblé enquanto possibilidade para o momento de transformação das artes plásticas, para além de um tratamento literário. Por sua origem dentro do candomblé, a produção de Valentim deve ser vista como potência desse universo cultural específico, e não apenas genericamente como mais um traço da cultura brasileira. Por extrair de um contexto popular autóctone os elementos para a projeção de uma brasilidade elementar e contemporânea, Rubem Valentim "pertence à mesma família espiritual de Volpi, de uma Tarsila", escreveu o crítico Mário Pedrosa (15). Poderíamos dizer que Valentim viveu possuído pelos orixás. Não se poderia restringir a obra de Valentim à discutível idéia de 'primitivismo' da arte moderna. Rubem Valentim não se apropriou de coisa alguma estranha à sua experiência e à sua crença. Novo paralelo da obra de Valentim pode ser definido com respeito ao pensamento e à obra de Hélio Oiticica na década de 60. Em seu programa em direção à experiência vital e à sensorialidade total, Oiticica estabelece referências mais específicas à religiosidade afro-brasileira em alguns Parangolés. Neles inscreve frases como "Incorporo a revolta" (Parangolé P15 Capa 11) ou "Estou possuído" (Parangolé P17 Capa 13) - incorporar ou estar possuído vinculam-se diretamente aos trabalhos de investimento dos orixás. No Éden (16) encontra-se O Penetrável de Água - Iemanjá -, uma tenda branca com o chão de água, evocativo dos atributos desta entidade. Evocando a Antropofagia de Oswald de Andrade para combater o mito universalista eurocêntrico, Oiticica formulou o Tropicalismo, preconizando o não-condicionamento às estruturas da cultura européia, dizendo textualmente que "só o negro e o índio não capitularam a ela" (17).

No saguão do auditório do Palácio do Itamaraty, sede do Ministério das Relações Exteriores em Brasília (18), estão três grandes painéis brancos em relevo de autoria de Rubem Valentim, Emanoel Araújo (19) e Sérgio Camargo, respectivamente. O painel de Valentim, de madeira pintada com a pureza do branco (conforme expressão do artista), representa um diálogo de temperaturas e da matéria orgânica, contrastando com o mármore empregado em grandes superfícies lisas de chão e paredes daquele edifício. O artista nele incorporou signos como o machado duplo, elemento emblemático de Xangô (20). Para o antropólogo Arthur Ramos, essa figura remontaria às representações egípcias, sumérias e orientais do enfeite das cabeças dos touros. O símbolo da cabeça representa a pedra do raio, como cena de possessão do pai de santo em cuja cabeça penetrou Xangô. Para Arthur Ramos, seria também como um meteorito, que é popularmente vinculado a raios e trovões (21). O painel de Rubem Valentim concentrado em Xangô, orixá dos raios e tempestades poderia então ser denominado a pedra do raio - o itá de Xangô. Para Pierre Verger, a pedra de raio (a que chama de èdùn àrá) seria um machado neolítico, que é lançado por Xangô como instrumento de sua ira. Xangô foi inicialmente descrito por Frobenius, que acreditava existirem dois orixás dessa espécie. Segundo Verger, Xangô possui dois aspectos: humano e divino. Diz que "como personagem histórico, Xangô teria sido Aláàfin Òyó, 'Rei de Òyó', filho de Oranian e Torosi, a filha de Elempê, rei dos tapás, aquele que havia firmado uma aliança com Oranian. (...) Xangô, no seu aspecto divino, permanece filho de Oranian, divinizado porém, tendo Yamase como mãe e três divindades como esposas: Oiá, Oxum e Obá. Xangô é viril e atrevido, violento e justiceiro: castiga os mentirosos, os ladrões e os malfeitores. Por esse motivo, a morte por raio é considerada infamante" (22). Pode-se prever que, na eleição do orixá desse panteão-painel de um edifício público em Brasília, Valentim não terá dispensado aquela carga simbólica do atributo de Xangô, com respeito à correção de princípios éticos. Desse modo, o painel de Valentim refere-se indiretamente a padrões morais na condução da coisa pública, que nos remeteria aos afrescos das cenas do Bom Governo e do Mau Governo (1338-1339), que Ambrogio Lorenzetti inscreve nas paredes do Palácio Público de Siena.

O painel de Brasília é, ainda, um paradigma do método de redução do símbolo ao signo operada pela obra de Valentim. No plano da constituição da linguagem, podemos dizer que a semiologia triunfa no Brasil a partir da década de 50, antes que a cultura negra tivesse inserido suficientemente seus símbolos no cenário da arte brasileira. Disso decorre importância adicional da obra de Valentim, com seu código semiológico emergente de uma teogonia. A obra é um texto cosmogônico contínuo. É o desenvolvimento de um código de signos essenciais capazes de atuar como índices dessa espiritualidade. As esculturas, pinturas e relevos de Rubem Valentim conservam múltiplas qualidades, como seu sentido hierático, heráldico, ritualístico, totêmico, ancestral, imemorial, solene, silencioso, expressivo e sintético. O artista teve de estabelecer o código e a sua legibilidade, afastada de hermetismos e da vulgaridade representacional. Giulio Carlo Argan construiu uma síntese da atitude de Valentim: "É necessário expor, antes, que eles (os signos simbólicos-mágicos) apareçam subitamente imunizados, privados, das suas próprias virtudes originárias, evocativas ou provocatórias: o artista os elabora até que a obscuridade ameaçadora do fetiche se esclareça na límpida forma de mito" (23). Redução do tótem a suas energias visuais essenciais ao seu limite máximo de irredutibilidade, além do que já perderiam seu sentido original. É nesse limite que Valentim se distancia do sentido de representação para trabalhar com a idéia de presentificação pelo olhar das forças vitais e naturais. Argan argumentaria conclusivamente aqui que "o seu apelo à simbologia mágica não é portanto o apelo à floresta; é, talvez, a recordação inconsciente de uma grande e luminosa civilização negra anterior às conquistas ocidentais. Por isso, a configuração das suas imagens é também mais claramente heráldica e emblemática do que simbólico-mágica". Com Valentim, a cultura negra no Brasil chega integralmente com seu sentido espiritual original à arte. Chega sem intermediações estilísticas e negociações políticas que renunciassem à identidade.

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